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12 de julho, 2024 ARTISTA EM DESTAQUE

De períodos e experimentações

Neoexpressionismo tropical, máscaras expressivas e uma mistura imensa de formas, texturas e cores. Na arte de Raique Moura, tudo existe e tem força. Direto de Dourados, no Mato Grosso do Sul, ele compartilhou sua história conosco. Desde os nove anos, quando ingressou no teatro, Raique tem caminhado de mãos dadas com a arte e a expressão. Pra conhecer a história dele, vem com a gente!

 

Como você começou sua jornada artística? 

Eu comecei minha jornada artística fazendo teatro desde meus nove anos mais ou menos. Aos 17 anos, ingressei no curso de Artes Cênicas na Universidade Federal da Grande Dourados, em Dourados, onde ainda resido. Atuei bastante no teatro e no decorrer do curso, com contato com vários universos visuais, desde a visualidade da cena às performances, comecei a ter um olhar bem curioso pelas visualidades, desde fotografia, desenho (com base no contato que tive com pessoas desse universo e um estágio que tive a oportunidade de fazer no SESC/MS que me fazia trabalhar com artistas visuais também). Foi, então, que comecei a experimentar criar para além do teatro, mais fortemente na fotografia inicialmente e, depois, no universo da pintura, ilustrações etc.

 

Durante toda minha vida, sempre fui muito viciado em papelaria, cadernos então nem se fale. Sempre que viajava, e se podia, voltava com um caderninho novo (só que eu não usava eles, colecionava). Então, quando meu olhar para esse universo visual começou a aflorar mais, eu comecei a produzir cadernetas artesanais que, no início, seriam só para mim, mas aos poucos comecei a comercializar para amigos, e logo me vi ilustrando as capas, criando composições com pequenas ilustrações. E aí parece que uma chave virou e comecei a mergulhar de cabeça nesse universo.

 

Um dia tive contato com um tablet de um amigo com programa de desenhos (achei aquilo incrível), só que eu não tinha um, então baixei o programa no meu celular e, por muito tempo, eu desenhava com os dedos naquela telinha pequena. Foi um processo muito rico de descobertas até quando consegui comprar meu próprio iPad e me jogar nesse mundo. Com o passar do tempo, comecei a conhecer novas técnicas, com tintas, canetas, e foi aí que conheci a POSCA, que desde então minha coleção só vem aumentando. Acho que todo meu trabalho direto em telas, papéis ou esculturas tem um traço com essa caneta que curto demais e que dão um toque todo especial na finalização de praticamente todos os meus trabalhos físicos.

 

O que inspirou você a se tornar um artista?

Eu lembro exatamente do dia que decidi que queria ser artista. Eu estava na terceira série, isso era no ano de 2001 (nossa, pensar assim me faz ver como o tempo voa), na escola e fomos levados para ver uma peça de teatro no centro cultural da cidade, lembro até o nome da peça: “A Vila de Capimbeba”. Quando aquele negócio começou (BUMMMM POR DENTRO DE MIM), foi exatamente ali que me vi nesse lugar de ser artista. Desde então eu sempre brincava de teatro com amigos e primas. Outra coisa curiosa que sempre lembro, é que desde pequenininho eu fazia caderninhos, cortava as folhas dos cadernos velhos, fazia cola com farinha de trigo para colar os papéis e fazia mini-cadernetinhas. Era muito legal isso. Queria ter guardado essas lembranças. Mas só está no campo da memória agora.

 

Seu estilo artístico é bastante único. Como você descreveria sua arte para alguém que nunca a viu?

Essa é, pra mim, uma das perguntas mais difíceis que me deparo sempre. Acho que minha arte é um emaranhado de coisas, retratos, corpos, criaturas (como gosto de chamar tudo), mas atualmente também estou no processo de lançamento do meu primeiro livro, um livro visual que será lançado com base em uma lei de fomento cultural que aprovei no estado. Um amigo que está junto na pesquisa começou a chamar meu trabalho de um “neoexpressionismo tropical”. Achei bonito isso, não sei se é isso ao final de tudo, mas acho que talvez resuma um pouco do caminho que sigo atualmente. <3

 

Quais são suas principais influências e referências no mundo da arte?

O deuso Basquiat, sem dúvida alguma, mas no início de tudo via muita interação com Modigliani, por conta da assimetria dos rostos, olhares desencontrados, algo que ainda carrego em muitos trabalhos. Mas, para além deles, Frida Kahlo, Salvador Dalí e inúmeros outros contemporâneos, como a galera do toco-oco, Nestor, Susano Correia. Acho que hoje em dia a gente tem acesso a tanta informação, que tudo influencia nossas criações. Onde moro (Dourados – MS) tem uma das maiores reservas indígenas urbanas da América Latina. Estive dentro das reservas trabalhando com comunidades indígenas por alguns bons anos, e acho que tem muita referência indígena em alguns dos meus trabalhos também. É impossível não ser atravessado por uma cultura tão potente como a cultura indígena, vivendo aqui.

 

 

Você tem alguma técnica preferida ou processo criativo que gostaria de compartilhar conosco?

Eu sou uma pessoa de períodos. Hora estou mais dedicado a um estilo, outra hora estou na fotografia, área em que tenho me dedicado muito à fotoperformance, depois junto a fotografia com interferências em pintura, depois estou no audiovisual, sempre permeando as ilustrações, esculturas e outros experimentos. Acho que, por causa da minha formação em teatro, gosto de experimentar a costura das linguagens. E, se isso é possível, por que não fazer, né? Mas, no universo das artes visuais, o que mais tem me agradado é descobrir o universo da escultura: pintar peça por peça de maneiras únicas, trazendo minha estética e gerando uma peça exclusiva sempre. Amo muito giz pastel também. Nos meus trabalhos dos últimos meses, acho que todos têm a mescla de pastel, POSCA, tintas acrílicas e serigrafia.

 

Como é o seu dia típico de trabalho? Você tem uma rotina específica quando está criando?

Trabalho a maior parte do tempo no meu ateliê, que fica onde moro. Por um lado, é bem bom estar em casa junto dos meus pets (são três doguinhos e um gato: Aisha, Jinkxs, John e Chico), mas, por outro, acabo misturando às vezes o cotidiano da vida com os processos. Meu ateliê acaba se desdobrando na casa toda, porque às vezes vou para a área do fundo pintar, outra hora volto para o ateliê quando é um trabalho mais delicado e que precisa de uma atenção maior. Mas, sempre que vou começar um trabalho novo, gosto muito de reorganizar tudo, para depois fazer o caos da criação.

Como trabalho grande parte da semana em casa, sempre que desenvolvo algum projeto, exposição ou ação, gosto de ir para a rua. Em uma das exposições de ilustrações que fiz, chamada “OUTROS OLHOS”, optei por realizá-la em parques e praças públicas da cidade. Foi muito legal, porque tudo que foi produzido dentro desse quarto que chamo de ateliê foi para a rua, para ser visto por pessoas aleatórias, muitas sem um contato prévio com linguagens artísticas, e tive retornos realmente riquíssimos.

 

Quais são as principais influências que moldam seu estilo artístico?

Acredito que o fato de ser ator me molda demais dentro do meu processo criativo. Ter estudado teatro me ajuda a perceber o mundo com um outro olhar. O lugar onde vivo, com uma questão indígena fortíssima, é uma região de conflito de terras e também de fronteira com outro país. Acho que tudo isso colabora para mostrar um pouco do que sou e de como me expresso no mundo atual.

 

Seus trabalhos frequentemente abordam temas como identidade, cultura e memória. O que te motiva a explorar esses temas?

Como citei na última pergunta, acho que viver em um local onde tem uma das maiores reservas indígenas urbanas da América Latina, um local fronteiriço com o Paraguai, e pelo contato direto com arte por conta do teatro, me faz automaticamente me debruçar em temas como esse. Diretamente ou indiretamente, isso tudo me atravessa e acaba sendo transposto para o meu trabalho. Além de tudo, por ser uma pessoa LGBTQIAPN+, acho que muito do que pinto e ilustro também traz uma carga da minha história, de sentimentos, dores, esperanças e sonhos.

 

Existe algum significado simbólico por trás das máscaras que você incorpora em suas obras?

Quando as criei, não havia nada além do desejo de transpor para algo palpável os meus desenhos (antes 2D). Queria dar “vida” às formas, para que as pessoas pudessem sentir as camadas e texturas. Aos poucos, percebi que as máscaras são retratos de muitas pessoas e criaturas, com uma variedade incrível de cores e formas. São também autorretratos, talvez uma representação de como me vejo. É um universo de possibilidades ilimitadas.

Se a sua arte fosse um poema ou alguma música, qual seria? 

Tem um poema que diz muito sobre tudo que sinto e, ao mesmo tempo, sobre minha arte e o ato de ser artista no Brasil.

Um trecho do “O menino que carregava água na peneira” de Manoel de Barros:

“O menino aprendeu a usar as palavras.
Viu que podia fazer peraltagens com as palavras.
E começou a fazer peraltagens.

Foi capaz de modificar a tarde botando uma chuva nela.
O menino fazia prodígios.
Até fez uma pedra dar flor.

A mãe reparava o menino com ternura.
A mãe falou: Meu filho você vai ser poeta!
Você vai carregar água na peneira a vida toda.

Você vai encher os vazios
com as suas peraltagens,
e algumas pessoas vão te amar por seus despropósitos!”

 

Se você pudesse viajar no tempo e assistir à criação de uma obra de arte famosa, qual escolheria e por quê?

Uau! Isso seria incrível. Quando li essa pergunta, vieram à mente dois artistas incríveis cujos processos criativos eu adoraria ver, mesmo que fosse de forma discreta. Frida Kahlo e Basquiat; tenho uma admiração tremenda pelo caos, pelas cores e pela potência que o trabalho de ambos traz ao mundo. O processo de Dalí seria algo fantástico de ver também, imagino. Nossa, parece que estou pecando por não mencionar outros artistas incríveis. Acredito que para nós, artistas contemporâneos, qualquer viagem para conhecer o processo de um artista que viveu anos atrás traria um olhar riquíssimo para o presente com base no acesso a tudo que temos hoje em dia.

 

Raique Moura também desenvolveu um projeto de arte onde ele dá vida e movimento às suas criações. Para assistir ao curta “VOANTE”, cola aqui: YouTube. E pra acompanhar a trajetória do artista, é só seguir o perfil dele no Instagram: www.instagram.com/raiquemoura/.